Não se encontravam há tanto tempo que era como se agora fossem estranhos um para o outro. A sua história ficara tão esquecida, que agora vista à distância, pareciam ser duas histórias distintas. Uma para cada. Bastante parecidas. Se as comparássemos podia-mos até arriscar dizer que pertenciam à mesma peça. Se sim ou se não, é um assunto que só interessava à arqueologia.
Beijaram-se à porta do centro comercial e como estavam atrasados foi só isso que fizeram. Entraram apressados centro comercial a dentro, ela na liderança, porque sabia melhor o caminho.
– Temos de nos despachar. Não acredito que vamos perder o filme.
– Pensei que era às e um quarto. Mas vamos conseguir. Queres correr?
Ela começou a correr imediatamente a seguir à sugestão. Estava só à espera de uma autorização para desautorizar as boas maneiras que mandam não correr em espaços públicos com muita gente. Chegaram ao mesmo tempo à bilheteira. Não estava ninguém na fila.
– Bom dia, noite. Eram dois bilhetes para, nem sei como é que se chama o filme, mas começa com P. tens aí a dizer?
– Se era para a sessão das oito já não há. Só para a próxima.
– Ah porra não acredito. Não pode ser. Eh pá que chatice.
– Pois. Já não posso mesmo fazer nada. O filme já começou.
– Oh começar não começou, não pode ter começado, só passaram cinco minutos.
– Pois.
– Granda chatice. E a que horas é a próxima sessão?
– Às 23h30.
– Só? O que é que vamos fazer aqui até as onze e meia. Nada. Não há nada para fazer. Bem. Obrigado, vamos pensar.
Afastaram-se da bilheteira. Ele ainda não tinha expressado o seu desagrado porque não tinha a certeza se não era melhor assim. Estava expectante por saber o que iam fazer agora.
– Bom. Então como é que estás? Parece que temos muito tempo para meter a conversa em dia.
– Três horas de vinte minutos. Temos três horas e vinte minutos.
– Onde é que queres ir?
– Tanto faz. Onde é que queres esperar?
– Vamos até ao parque.
Saltaram o gradeamento e entraram numa zona coberta por relva que, a avaliar pela ausência de uma passagem para o seu interior, devia estar interdita a pessoas. Contudo estava cheia de vários grupos pessoas, sentadas a desfrutar os últimos raios de sol daquele dia. Sentaram-se os na relva sem saber exactamente como iam preencher aquele tempo não contabilizado pelos seus planos.
– Comecei a praticar tai chi chuan. Relaxa-me imenso. Então agora.
– Ainda estás a morar no mesmo sítio?
– Qual sitio?
– Já não me lembro para onde foste morar. Mas é o mesmo não é.
– Sim deve ser. Já lá estou à tanto tempo que deve ser. E tu? Ainda és pintor? Ou já começas-te a ter dinheiro para pagar as contas?
– Eu não tenho grandes contas para pagar. Quando moravas comigo era outra conversa.
– Sempre paguei tudo. Que me lembra. Mas se te estou a dever alguma coisa.
– Não não. Estou a brincar. Não me deves nada.
– Boa. Então hoje pagas tu o jantar.
Ambos experimentavam posições para se sentar na relva. Ora de mãos atrás a apoiar o tronco, ora abraçando os joelhos com os braços, cruzando as pernas uma por cima da outra. Iam-se imitando um ao outro, à procura de uma posição confortável. Uma posição conseguissem manter por muito tempo sem dor. Já não acreditavam em posições para o resto da vida. Mas se descobrissem alguma, que fosse suportável e até desse ao corpo algum prazer, iriam mantê-la pelo menos até ao último raio de sol. Por enquanto continuavam a tentar. Ela decidiu repetir a das mãos enterradas na relva a servir de suporte, e pernas esticadas em V. Ele foi copiou.
– Estou a pensar mudar-me para aqui. Estou cansada de Sintra. Aqui pelo menos posso sair à rua, ver coisas acontecer.
– Queres trocar comigo? Eu estou cansado de ver coisas a acontecer. Se não acontecesse mais nada, por mim estava óptimo.
– Às vezes mereces que te metam um espelho à frente quando dizes certas coisas. Já nem me lembrava dessa tua… maneira de dizer as coisas.
– Qual maneira de dizer as coisas?
– Não. Eu preciso de pessoas com vontade de fazer coisas na minha vida. Dividir a casa com mais, sei lá, uma data de gente.
– Mas que coisas é que queres fazer?
– Sei lá. Passear pela cidade junto ao rio. Comer numa mesa cheia de gente, numa esplanada iluminada por luzes de natal, e música vinda de todos os lado. As ruas cheia de gente a noite inteira, até depois de nos irmos deitar.
– E o teu marido vai a esse jantar? Ou só aparece mais tarde?
Mais adiante três pessoas, separadas por uma distância considerável, atiravam um disco entre elas. Um cão corria de um lado para o outro atrás de uma bola arremessada pelo dono. E um rapaz dizia qualquer coisa ao ouvido da namorada que a punha a rir descontroladamente.
– Vamos jogar ao disco com eles?
– Vamos. Deixa-me só descansar um bocadinho.
Deitou-se de barriga para cima na relva. Ela chegou-se mais para perto dele, e esticou-se da mesma maneira. Nos seus campos de visão passou só a existir um azul avermelhado que escondia as estrelas, mas não por muito tempo. Os pássaros faziam as suas últimas passagens por aquele plano azul e vermelho. Dali por uns minutos iam interromper o seu voo por umas horas. Iam esperar abrigados num ramo de uma árvore qualquer. Quando o sol decidisse voltar, arrancavam dos ramos das árvores para retomar o seu voo incessante.
– Está-se bem aqui. Melhor do que no cinema.
– Isto é um bom plano. E estamos deitados. Sempre é melhor do que sentados a ver pessoas a fingir que estão a fazer coisas.
– Porque é que as pessoas fingem que estão a fazer coisas?
– Não sei. Nunca pintei um céu. Já pintei tanta coisa. E nunca me passou pela cabeça pintar a merda do céu.
– Passas pouco tempo nesta posição. Este já não pintas.
– Podia-lhe tirar uma foto e pintar amanhã.
– Para que é que vais pintar um céu?
– Amanhã também não podia. Tenho tanta coisa para fazer amanhã.
– Queres ir andando? Está a ficar frio não está.
– Sim quero. Vamos.
O amor é um curto circuito dizia Beckett. Foi uma sorte, à falta de uma palavra certa para explicar o que aconteceu. Quiseram os dois deitar-se juntos, e quiseram os dois, ao mesmo tempo, começar a caminhar.
Os que ficaram, os outros exemplos pessoais no parque, não tiveram a mesma sorte:
Das três pessoas que jogavam frisbee, uma perdeu a vontade de continuar a brincadeira muito antes das outras duas. A rapariga queria continuar a rir-se, mas o rapaz não tinha mais nada engraçado para dizer. E o dono do cão fartou-se de lhe atirar a bola. Quando o cão estava capaz de continuar a correr atrás daquela bola para o resto da sua vida, ou até lhe acabarem as forças.
Subiram lado a lado a rua, muito devagar. Qualquer que fosse o seu destino, queriam que este chegasse dali por muito tempo. Tal como fizeram na relva, com as posições do corpo estático, começaram a experimentar agora em movimento. Ela contou dois tempos enquanto ele deu um passo. E pensou que conseguia melhorar o tempo dele para o dobro. Ele topou que ela dava agora passos de quatro tempos cada. Foi ambicioso e no passo seguinte demorou-se, vejam bem, dezasseis tempos. Ela quase que ia tropeçando e se esbardalhando no chão tal fora a mudança de velocidade. Mas não se deixou ficar, e apresentou-lhe uma incrível passada de cinquenta e nove tempos.
Na manhã seguinte quando os pássaros arrancaram voo dos ramos das árvores, eles ainda estavam a subir a rua.